Toda novidade, ainda mais quando notória, desperta elogios e críticas. Recentemente, o decreto regimental da Advocacia Geral da União, que pode dispor sobre a organização e funcionamento dos órgãos já criados por lei complementar, suscitou críticas de comentaristas na grande imprensa de que a indeterminação de conceitos como “desinformação” e “democracia” poderia levar a abusos por parte dos procuradores [1].
A Procuradoria é integrada por membro das quatro carreiras da Advocacia da União [2], inclusive por procuradores federais, aos quais incumbe, por atribuição legal, conforme artigo 43, I, da Medida Provisória nº 2229-43/2001 (de vigência garantida pelo artigo 2º da EC nº 32/2002), “a representação judicial e extrajudicial da União, quanto às suas atividades descentralizadas a cargo de autarquias e fundações públicas, bem como a representação judicial e extrajudicial dessas entidades”.
As críticas, a meu sentir, não procedem, pois a Procuradoria está de acordo com as necessidades de seu tempo.
Democracia é um fundamento constitucional. Sua defesa não é atribuição de um poder específico, mas dever de todo poder público, diante da eficácia vertical dos direitos fundamentais, obedecê-la. O caráter democrático do Estado brasileiro é mencionado em pelo menos 11 normas constitucionais, inclusive no seu Preâmbulo, e, naturalmente, por ser a lei fundante do Estado e conceito disseminado inclusive em convenções internacionais, nunca foi refutado como conceito indeterminado e sujeito a abusos, pois não há, no texto originário da Constituição, normas constitucionais inconstitucionais.
Também inexiste lacuna legal. A Lei 14.197/2021, chamada de Lei de Defesa do Estado Democrático, tipificou uma série de condutas do que seria um atentado à democracia.
E, ainda que conceitos indeterminados [3] fossem, a sua concretização estaria sujeita à subsunção da discricionariedade, “cujo preenchimento demanda uma avaliação de pessoas, coisas ou processos sociais, por intermédio de um juízo de aptidão” [4], que não afasta o controle judicial sobre essas escolhas principalmente diante da garantia fundamental da inafastabilidade da Jurisdição (artigo 5º, XXXV da CF). No entanto, nessa área específica, o Poder Judiciário não tem como substituir sua vontade, pela vontade do administrador, sob pena de violar a separação dos Poderes (artigo 2º da CF). O Judiciário não deve controlar “se o resultado dessa operação foi correto, mas se o processo de tomada de decisão foi devidamente motivado e justificado, se todos os exames, laudos e pareceres foram elaborados com lisura, tornando-se sustentável”.
Talvez vivamos uma época que desperta sentimentos semelhantes à ocasião da popularização da imprensa por Gutenberg, no século XV, que antecedeu às grandes navegações e ao eurocentrismo. As redes sociais e a ambientação da sociedade ao seu uso reclamam a proteção do indivíduo contra abusos. Afinal, gritar “fogo” na invasão de um palácio pode ser atitude albergada pelo âmbito de proteção do direito fundamental à liberdade de expressão. Mas gritar “fogo” em meio a um estádio de futebol, quando tudo transcorre normalmente, é conduta abusiva, num juízo de ponderação.
A Procuradoria Nacional da União está sujeita ao escrutínio público e à operação do Direito com as ferramentas já existentes. Não abre espaço para abusos ou arbitrariedades, seja por falta de regulamentação legal, sejam pelos controles da discricionariedade portanto.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-jan-23/ricardo-almeida-procuradoria-nacional-defesa-democracia